Ícone dos desfiles, a rainha da bateria do Império Serrano fala sobre sua trajetória de luta e resistência, planeja o lançamento de uma autobiografia e quer voltar a atuar em novelas
Por RMelo Produções
Quitéria Chagas — Foto: Waldir Evora
Rainha da bateria da tradicionalíssima escola Império Serrano, Quitéria Chagas é alguém com muita história para contar, em uma trajetória que se mistura com a luta e a resistência das mulheres negras que se dedicam ao universo do samba. Múltipla, ela também é atriz, bacharel em Psicologia e mãe de Elena, de 10 anos. Para Quitéria, este Carnaval definitivamente não será igual ao que passou: ela não esconde que a emoção vai marcar a celebração de seus 25 anos de desfiles. “É uma sensação de missão cumprida. Passei por muitas lutas e barreiras, mas fiz tudo isso para dar valor à mulher do samba, que foi historicamente marginalizada. A cada desfile, a cada conquista, vejo o quanto somos fortes, e o samba é um reflexo de nossa história, da nossa luta”, reflete.
Após sete anos vivendo na Itália, Quitéria, de 44 anos, voltou a morar no Brasil, em 2023, com Elena. São muitos os novos projetos já traçados. O primeiro é uma autobiografia, na qual vai revelar suas múltiplas facetas. Ao mesmo tempo, ela reforça seus laços antigos, como a responsabilidade de estar mais uma vez à frente da bateria conhecida como Sinfônica do Samba e representar a realeza do Império Serrano, berço de nomes como Silas de Oliveira, Dona Ivone Lara e Arlindo Cruz.
Quitéria enxerga o Império, fundado em 1947, como uma família. Atual mestre da bateria da escola, Vitinho é neto do primeiro músico a comandar a Sinfônica do Samba. “Tem toda uma ancestralidade viva na bateria e na escola. Foi no Império Serrano que nasceu o reco-reco, a frigideira que deu origem ao tamborim, o agogô de quatro bocas, símbolo e referência da bateria; além de destaques, fantasias, comissão de frente, ala coreografada… Muito do que existe no Carnaval foi invenção da nossa escola”, detalha.
Quitéria Chagas — Foto: Waldir Evora
Desde a adolescência, o samba foi seu refúgio e paixão. Aos 15 anos, Quitéria aprendeu a sambar na escola de dança de Carlinhos de Jesus e se tornou passista na União da Ilha, numa época em que as passistas negras não tinham reconhecimento. “As personalidades brancas eram as mais vistas e valorizadas no Carnaval e nas mídias. Mulheres pretas do samba eram invisibilizadas e marginalizadas”, lembra ela, ressaltando que, apesar dos avanços recentes, há ainda um longo caminho a ser percorrido quando se fala em representatividade na folia.
Para Quitéria, o samba e a luta pela igualdade andam de mãos dadas. Ela defendeu a lei que criou o Dia Nacional do Sambista (2 de dezembro), que homenageia Dona Ivone Lara e a importância das sambistas. “O carnaval é diverso, plural, para todos e todas, mas precisamos de equidade. A festa foi criada por e para o povo preto, e não podemos abrir mão desse protagonismo”, defende.
Quitéria reconhece o apoio de quem a ajudou a superar dificuldades ao longo de sua trajetória, como o alto custo dos figurinos de rainha de bateria. “Eu tenho uma agente, a empresária Rosângela Melo, uma mulher preta, uma grande potência do samba. Ela tem credibilidade há décadas no meio”, diz a rainha de bateria, orgulhando-se do trabalho feminino conjunto. “Rosângela foi a primeira mulher captadora de recursos da história do Carnaval, tem um grande tino comercial. Hoje ela usa sua experiência para me conectar com as marcas. É a união da credibilidade e da experiência. Duas mulheres pretas com seus pioneirismos e potências na história do carnaval, uma rainha, outra empresária”, completa.
Quitéria com a agente e amiga Rosângela Melo — Foto: Arquivo Pessoal
“O samba me escolheu”
Quitéria relembra com carinho o início de sua carreira como atriz, em especial de sua madrinha artística, a dançarina e apresentadora Carla Perez. “Fui a primeira rainha de bateria a atuar. No começo, o preconceito era imenso. Não me deixavam fazer testes, mas fui persistente. As coisas começaram a mudar quando fui bailarina do programa da Carla, e a primeira negra a ser assistente de palco do Gugu Liberato no ‘Domingo Legal’, no SBT. Depois, fui fazer vinheta da Globo, falaram que eu era a nova Globeleza e estreei na novela ‘Páginas da Vida’ (2007). Tudo começou a mudar, ganhei mais destaque, não era mais uma passista sem nome. O samba me escolheu, e a televisão me deu visibilidade”, afirma.
O mestre e a rainha: Quitéria Chagas com Vitinho, que comanda a bateria do Império Serrano — Foto: Divulgação
A conexão de Quitéria com o samba não se restringe às quadras e ao Sambódromo. Ela já serviu de inspiração para um dos mais populares grupos do gênero no país, o Sorriso Maroto. Em 2020, a rainha de bateria subiu ao palco da banda, diante de 30 mil pessoas, para ser celebrada como musa do hit “Me Olha nos Olhos”. “Eu fico sem palavras para descrever como foi participar desse momento histórico. Só digo que a gratidão é eterna por terem me escolhido para ser a Quitéria do Sorriso, do Bruno (Cardoso, vocalista da banda). O público nos escolhe e faz a magia atravessar gerações.”
“Me Olha nos Olhos”: A emoção marcou a homenagem do Sorriso Maroto a Quitéria Chagas, na foto com o vocalista Bruno Cardoso — Foto: Divulgação
“Estou deixando para trás tudo o que não me faz bem”
Em 2023, Quitéria enfrentou a dolorosa perda de seu marido, Francesco Locati, vítima de um câncer. “A morte dele mudou tudo em minha vida. Mas ele sempre me dizia para seguir em frente, e é isso que estou fazendo, com muito amor por minha filha e pela vida”, diz. “Estou deixando para trás tudo o que não me faz bem. Meu marido sempre falava para me desapegar do que não me faz feliz.”
Nesse movimento de se concentrar no que a faz feliz, ela quer voltar a atuar em novelas em breve. “Tenho feito testes e estou muito animada. Sinto falta de trabalhar nas telinhas”, conta. O plano se soma ao lançamento de sua autobiografia, ainda sem data de lançamento prevista, e ao trabalho com o Carnaval, que a rainha Quitéria quer manter ainda por muitos anos. Tudo isso com o seu emblemático e radiante sorriso, que é sua marca há 25 anos nos desfiles do Rio.
Quitéria Chagas — Foto: Waldir Evora